Num passado muito recente, alguns profetizaram que este milénio seria o milénio da espiritualidade. Nesta aurora que vivemos e tendo em conta a realidade mundial, fica a esperança de que essa primavera espiritual aconteça.
Ao olhar para a realidade da vida humana, ao longo de toda a História, mas particularmente nos nossos dias, verificamos que o homem tem fome de uma vida espiritual, mas continua a saciá-la com pão material.
O homem espiritual que queríamos construir continua a sentar-se à mesa da humanidade comendo o banquete do “homem nuclear”. Ou seja, daquele que se vê como «um dos últimos na experiência da existência, e não tanto como um pioneiro que trabalha para um novo futuro, pois os mesmos poderes que lhe permitem criar vida nova contêm em si o potencial de autodestruição».
O Homem criado por Deus continua a comungar a humanidade, esquecendo-se de Deus e da sua origem divina. O homem materializado continua a fazer-se deus, esquecendo o Deus de todos.
Do homem natural ao homem espiritualMas, se percorrermos o calminho interior do homem, descobrimos que a sua árvore genealógica, o seu ADN, é essencialmente espiritual. «A vossa vida está escondida com Cristo em Deus.» (Cl 3,1-4: Dia de Páscoa, II Leitura)
Richard Bach diz que o ser humano é uma expressão de vida, emana luz e reflecte o amor em qualquer dimensão que decida tocar. A humanidade não é uma simples descrição física: é uma mente humana e divina que faz com que o homem, longe de se sentir um “anjo infeliz”, se contemple como criatura de Deus numa harmonia integral com o mundo, com a natureza, com o seu corpo, a sua sexualidade, o seu trabalho, a arte, a ciência, a politica, o sofrimento, o seu sentir… Com a vida.
Da alienação espiritualista
à descoberta da espiritualidadeO homem é um “animal espiritual”, vitalizado pelo pneuma (sopro) divino. Este pneuma divino é bem diferente do “espírito di(o)vin(h)o”, onde tantos jovens procuram saciar a sede de espiritualidade em “shots” de prazer momentâneo, os quais, mais do que dar vida, queimam a possibilidade de viver. Em tragos de espiritualismos meramente juvenis. De euforias banais que, em vez de felicidade, nos cumulam com frustração e amarguras figadais alheias a uma realização intemporal. Não será isto uma patologia espiritual, que precisa de ser purificada em Jesus Cristo, o único capaz de nos inebriar com a força da sua ressurreição?
Contudo, muitos jovens e muitos adultos também já perceberam que, na realidade actual, «não podem viver resignados a uma vida fechada no tempo, sem determinação, sem horizontes e sem esperança». É por isso que em toda a parte surgem espaços que permitam o encontro das pessoas consigo mesmas e com a descoberta da sua espiritualidade.
Pode ser através da oração, da celebração litúrgica, dos exercícios espirituais, da contemplação, meditação e reflexão, da introspecção, do yoga, zen e outras técnicas orientais; umas vezes em comunhão com a mística da Igreja, outras vezes concorrentes com ela.
Esta é uma realidade do tempo, para que assim se possa descobrir e sentir a intemporalidade da vida espiritual que habita em nós. E porque não, uma forma de corrigir situações de alienação espiritualista, que alguns confundem com espiritualidade autêntica.
Da vida para o Evangelho
e da ressurreição para vida
Quem se coloca numa atitude de prisioneiro do agora e não se abre à mudança, aos sinais dos tempos e à novidade do Espírito do ressuscitado, será que percebeu o que é ser um verdadeiro visitante e peregrino deste mundo?
Em tempo de ressurreição, a caminho de Emaús, importa partir «da vida para o Evangelho, e da ressurreição para a vida» onde sentimos a essência do ser e a levamos para a vida e para as nossas relações em gestos de amor.
Tocar a intimidade do Ressuscitado, torna-nos vulcão humano onde arde bem cá dentro a força da Vida e do Espírito, não só pela escuta da Palavra mas também pela contemplação de Cristo fonte de eternidade: «Não ardia cá dentro o nosso coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (Lc 24,13-35).
É este fogo que nos dilata os horizontes culturais e da socialização, «obrigando-nos a sair do âmbito de uma espiritualidade voltada para nós mesmos e do nosso próprio sofrimento». Uma espiritualidade baseada na nossa relação com o mundo e do mundo com Deus. Num equilíbrio entre o corpo e o espírito, de forma a evitar um “monofisismo ascético”, ou um “misticismo anti-humano”, num “beatismo estéril”. E desta forma perceber que é na natureza. É na humanidade e na sua realidade multifacetada que Deus quer acender o fogo do seu amor. E neste palco humano, poderemos contemplar o céu, o divino no humano, o espiritual no material, enquanto nasce a vontade de construir aí a nossa tenda.
Do projecto de Deus
à sua realização na História
A espiritualidade do homem e da mulher de hoje, tem de ir para além da mera captação e decifração do projecto salvífico de Deus, para o realizar no interior da História.
Num pensamento de Bon-höfer sintetizo esta ideia: «No reino de Deus só pode crer quem ama a terra e Deus ao mesmo tempo.»
Na amplitude do universo, o recanto da humanidade é o melhor espaço para viver e sentir a espiritualidade, que marca a nossa existência desde a sua origem.
«Há sempre uma razão para viver. Podemos elevar-nos acima da nossa ignorância. Podemos olhar o nosso reflexo como o de criaturas feitas de perfeição, inteligência e talento. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!» (Richard Bach).
:: «Mandai, Senhor, o vosso Espírito, e renovai a terra» (Refrão do Salmo Responsorial do Pentecostes).
:: «Todos ficaram cheios do Espírito Santo» (Act 2,1-11: 1ª Leitura do Dia de Pentecostes).
:: «Recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas» (Act 1,1-11: 1ª Leitura da Ascensão).
:: «Hoje é muito necessária uma espiritualidade que motive a vida quotidiana. O homem actual não se resigna à vida fechada no tempo, sem horizontes e sem esperança. Sente-se empurrado, forçado a optar pela espiritualidade, já que um dilema o tortura: ou espiritualidade, como atitude orientadora, decisiva, unificadora, ou uma vida medíocre, reduzida à cadeia superficial de acções desprovidas de significado definitivo; ou uma espiritualidade, como escuta religiosa do Espírito, que habita no homem, ou confinada ao universo material e no fervilhar da técnica sem alma da sociedade consumista; ou espiritualidade, como encontro vivo com Cristo, fonte de liberdade, de comunhão e de vida eterna; ou condenação ao absurdo e ao desespero.
O homem de hoje sabe bem que “quem se contenta com a monotonia e a mediocridade do suceder-se das coisas não terá perdão”.» (R. A. Knox, in Dicionário de Espiritualidade)
:: Na certeza de que aqueles que se sentem “possuídos” pelo Espírito de Deus em constante Pentecostes na sua vida, saberão caminhar pela estrada da humanidade com a força do Espírito, rompendo as barreiras do tempo para tocar a sua vida e a vida dos outros de forma divina e espiritual, como te colocas diante destes textos e da reflexão que eles propõem?
in http://www.capuchinhos.org/vocacional/escuta/adn.htm